1 - ''(Os marxistas ortodoxos) FALAM SEMPRE CONTRA OS DIREITOS HUMANOS PORQUE MARX FALOU CONTRA O ILUMINISMO''
Hobsbawm:
''A palavra 'progresso' nos conduz àquela que foi claramente a grande matriz intelectual dos pensadores, socialistas e comunistas, que analisaram a sociedade no começo da era moderna, ou seja, ao iluminismo setecentista (em particular, o francês). Ao menos essa era a firme opinião de F. Engels. [5] O que Engels ressaltava acima de tudo era o racionalismo sistemático do iluminismo. A razão constituía o fundamento de todas as ações humanas e da formação da sociedade, e também o padrão contra o qual 'todas as formas prévias de sociedade e governo, todas as ideias cediças transmitidas pela tradição' deveriam ser rejeitadas. 'Doravante a superstição, a injustiça, o privilégio e a opressão deveriam ser substituídos pela verdade eterna, a justiça eterna, a igualdade fundada na natureza e nos direitos inalienáveis do homem.' O racionalismo das Luzes implicava uma abordagem fundamentalmente analítica da sociedade, o que incluía, é lógico, a sociedade burguesa. Contudo, as várias escolas e correntes do Iluminismo proporcionavam muito mais do que um guia para a crítica social e a mudança revolucionária. Ofereciam a crença na capacidade do homem para melhorar suas condições, até mesmo em sua perfectibilidade, a crença na história da humanidade como o progresso humano rumo àquela que deveria ser, um dia, a melhor sociedade possível, além de oferecer critérios sociais, com os quais julgar as sociedades, mais concretos do que a razão em geral.'' (Marx, Engels e o socialismo pré-marxiano)
''Para os marxistas, o marxismo implicava tanto a continuidade da velha tradição burguesa (e de fato proletária da razão, ciência e progresso quanto sua transformação revolucionária na teoria e na prática.'' (A era do antifascismo, 1929-45)
''Quando, depois de 1933, os comunistas passaram a insistir nas tradições progressistas das revoluções burguesas, bem como no antifascismo que partilhavam com socialistas e liberais, a 'velha esquerda' também descobriu a necessidade de um campo comum. Não estava a própria burguesia abandonando as velhas realidades do racionalismo, da ciência e do progresso? Quem eram hoje seus mais determinados defensores? O influente livro La crise du progrés, de Georges Friedman, publicado em 1937 sob os auspícios da Nouvelle Revue, argumentava convincentemente que o campo comum era o materialismo dialético, que, justamente por ser um um materialismo, durante longo tempo fora apontado por seus oponentes como inimigo de todas as aspirações superiores da humanidade. A União Soviética representava agora tanto as tradições quanto as aspirações abandonadas pela burguesia.'' (Idem)
''(...) as ideologias de esquerda, inclusive o socialismo, que tinham raízes no iluminismo do século XVIII.'' (Marx e o trabalhismo: o longo século)
Bárbara Freitag (e essa aqui é prova contra o interesse, porque tenta criticar e parcialmente refutar o marxismo em teses supostamente escritas n'O Capital que jamais foram postas lá):
''O esforço teórico-crítico de Marx tinha uma intenção iluminista: esclarecer a classe operária sobre as verdadeiras causas de sua miséria e opressão. Com a arma da crítica, Marx queria ajudar o proletariado de todo o mundo a reconhecer nas estruturas materiais da produção capitalista os impedimentos para a sua emancipação. A conquista da liberdade da própria classe operária pressupunha, pois, a transformação dessas relações de produção, criando um novo modo de produção que permitisse a realização da liberdade e igualdade para todos.'' (Itinerários de Antígona)
2 - ''Não somos seres puramente sociais e históricos, somos seres biopsicossociais (ou seja, biológicos, psicológicos em sua matéria, e sociais como parcialmente e não plenamente definidos pela sua cultura, uma vez que o meio social nos determina, mas não nos cria)''
Não sei se você sabe, Glauber, mas o próprio Marx era um grande admirador de Darwin (sequer cheguei à metade do tomo I d'O Capital, o magnum opus do filósofo de Treves, e já há duas citações de Darwin; ambas, basicamente, sobre o desenvolvimento da ''tecnologia orgânica'', a adaptação dos órgãos aos ambientes no processo evolutivo. É ÓBVIO que Marx admitia que somos ''seres biológicos e psicológicos'').
2.2 - ''o universo é o sistema de todos os sistemas, e como tal, devem ser estudados à luz de uma ética materialista, que não é presente em Marx, porque é presente por outro lado, todo o jogo idealista do materialismo dialético para descrever até mesmo as ciências tais como as conhecemos, uma vez que o materialismo do sistemismo, em especial o bungeano (fazendo aqui uma diferença de Von Bertalanffy por exemplo) é não-reducionista e não fisicalista. Os marxistas, em especial os mais ortodoxos, tratam a ciência tal como é conhecida, isto é, fora de sua filosofia dialética, como "positivismo"''
Cito Engels:
''Graças a essas 3 grandes descobertas (a célula, a transformação da energia e o processo evolutivo) e aos demais progressos consideráveis das ciências naturais, estamos hoje em condições de demonstrar, em suas grandes linhas, não apenas a conexão dos fenômenos da natureza dentro de um domínio determinado, mas também a conexão existente entre esses diferentes domínios, apresentando assim, sob uma forma bastante sistemática, por intermédio dos fatos demonstrados pelas próprias ciências naturais empíricas, um quadro de conjunto da conexão existente na natureza.'' (Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã)
3 - ''Portanto ela (a história) não está resumida à luta de classes e a existência das sociedades não é puramente histórica (daí o historicismo subjacente à argumentação de meu opositor). A sociedade, como falei, é um supersistema e não uma "superestrutura histórica" uma vez que seus envolvidos são seres biopsicossociais. Isto é, devemos considerar seu estudo não apenas histórico e materialista, e sim, cultural, psicológico (é dizer, biológico e neurocientífico).''
Engels, novamente:
''De acordo com a concepção materialista da história, o elemento determinante final na história é a produção e reprodução da vida real. Mais do que isso, nem eu e nem Marx jamais afirmamos. Assim, se alguém distorce isto, afirmando que o fator econômico é o único determinante, ele transforma esta proposição em algo abstrato, sem sentido e em uma frase vazia.'' (Carta a J. Bloch, 1890)
''Os homens fazem a sua história, ocorra ela como ocorrer, perseguindo cada um os seus próprios objectivos queridos conscientes, e a resultante destas várias vontades que agem em diversas direcções e da sua influência múltipla sobre o mundo exterior é que e, precisamente, a história. Trata-se, portanto, também daquilo que muitos indivíduos querem. A vontade é determinada por paixão ou reflexão. Mas, as alavancas que, por sua vez, determinam a paixão oU a reflexão são de espécie muito diversa. Em parte podem ser objectos exteriores, em parte, móbiles [Beweggrunde] ideais [ideelle], ambição, «entusiasmo pela verdade e pela justiça», ódio pessoal, ou também puros caprichos individuais de toda a espécie. Mas, por um lado, vimos que as várias vontades individuais activas na história, na maioria dos casos, produzem resultados totalmente diferentes dos queridos — frequentes vezes, rotundamente os contrapostos — e que, portanto, para o resultado conjunto, os seus móbiles são de subordinada significação. Por outro lado, pergunta-se ainda: que forças impulsionadoras estão, por sua vez, por detrás destes móbiles, que causas históricas tomam, na cabeça dos agentes, a forma de tais móbiles?
O velho materialismo nunca se pôs esta questão. A sua concepção da história — na medida em que, em geral, ele tenha uma — é, portanto, também essencialmente pragmática, ajuíza tudo segundo os motivos da acção, divide os homens que agem historicamente em nobres [de alma] e não-nobres e verifica, então, em regra, que os nobres são os enganados e os não-nobres os vencedores; do que se segue, então, para o velho materialismo, que do estudo da história não resulta muito de edificante e, para nós, que, no domínio da história, o velho materialismo se tornou infiel a si próprio, porque toma as forças motrizes ideais aí actuantes como causas últimas, em vez de investigar aquilo que está por detrás delas, quais são as forças motrizes dessas forças motrizes. A inconsequência não reside em que sejam reconhecidas forças motrizes ideais, mas em que, a partir destas, não se regresse mais atrás às suas causas motoras. A filosofia da história, em contrapartida, tal como, nomeadamente, é representada por Hegel, reconhece que os móbiles ostensivos, e também os [móbiles] realmente activos, dos homens que agem historicamente de modo nenhum são as causas últimas dos acontecimentos históricos, que por detrás destes móbiles estão outros poderes motores, que há que investigar; mas ela procura esses poderes, não na própria história, importa-os antes de fora, da ideologia filosófica, para dentro da história. Em vez de explicar a história da Grécia antiga a partir da sua conexão própria, interna, Hegel afirma, por exemplo, simplesmente que ela não é nada mais do que a elaboração das «figuras da individualidade bela», a realização da «obra de arte» como tal. A este propósito, ele diz muito de belo e de profundo acerca da Grécia antiga, mas isso não impede que nós hoje já não nos contentemos com uma tal explicação, que é uma mera maneira de dizer.
Quando se trata, portanto, de investigar os poderes impulsionadores que — consciente ou inconscientemente e, por certo, commuita frequência, inconscientemente — estão por detrás dos móbiles dos homens que agem historicamente e que constituem propriamente as forças motrizes últimas da história, não se pode tratar tanto dos móbiles dos indivíduos, por mais eminentes que sejam, mas daqueles que põem em movimento grandes massas, povos inteiros — e, em cada povo, por sua vez, classes inteiras de povo; e isto também, não momentaneamente, para um jacto passageiro e um fogo de palha que rapidamente arde, mas para uma acção duradoura que desemboca numa grande transformação histórica. Fundamentar as causas motrizes que aqui se reflectem clara ou obscuramente, imediatamente ou em forma ideológica, mesmo em forma celestializada, na cabeça das massas que agem e dos seus dirigentes — os chamados grandes homens — como móbiles conscientes — é este o único caminho que nos pode pôr na pista das leis que dominam na história, tanto grosso modo como nos períodos e países singulares. Tudo o que põe os homens em movimento tem de passar pela cabeça deles; mas que figura toma nessa cabeça, depende muito das circunstâncias. Os operários de modo nenhum se reconciliaram com a empresa ma-quinizada capitalista pelo facto de não mais fazerem as máquinas em bocados, como ainda [aconteceu] em 1848 no Reno.
Mas, enquanto em todos os períodos anteriores a investigação destas causas impulsionadoras da história era quase impossível — por causa das [suas] complicadas e encobertas conexões com os seus efeitos —, o nosso período presente simplificou tanto estas conexões que se pôde resolver o enigma. Desde a efectivação da grande indústria — portanto, pelo menos, desde a paz europeia de 1815 —, não foi mais segredo para homem nenhum em Inglaterra que lá toda a luta política gira em torno das pretensões à dominação de duas classes: a aristocracia possuidora de terras (landed aristocracy )(32*) e a burguesia (middle class)(33*). Em França, com o regresso dos Bourbons, ganhou-se consciência do mesmo facto; os historiógrafos do tempo da Restauração[N198], de Thierry a Guizot, Mignet e Thiers, por toda a parte falam disso como a chave para o entendimento da história francesa desde a Idade Média. E, desde 1830, em ambos os países, a classe operária, o proletariado, foi reconhecido como o terceiro lutador por essa dominação. As relações simplificaram-se tanto que tinha que se fechar os olhos premeditadamente para nao ver na luta destas três grandes classes e no conflito dos seus interesses a força impulsionadora da história moderna — pelo menos, nos dois países que progrediram mais.'' (Idem)
4 - ''Além desta noção (a liberdade de consciência) estar intrínseca a defesa das liberdades individuais básicas, ela também supõe a liberdade de expressão. Ambas liberdades são odiadas pela esquerda, em especial pelos marxistas mais ortodoxos, uma vez que são inimigos delas porque não acreditam em democracia senão aquela que vem após uma revolução armada proletária (mesmo ignorando se isso viria a dar lugar a novas classes burguesas), e sim, creem em ditadura. O imediato oposto de democracia.''
Leandro Konder, sobre Marx-Engels e a questão da liberdade de consciência:
''Marx e Engels integravam o grupo de filósofos ateus, e eram ateus preocupados com a possibilidade de serem mal compreendidos e vistos como perseguidores de crentes. Em 1874, antes da Revolução Russa de 1917, Engels dizia, em oposição profética ao que se faria na criação da URSS, trinta anos mais tarde: 'Isto [porém] é certo: hoje em dia, o único serviço que ainda se pode fazer a Deus é o de declarar o ateísmo um artigo de fé compulsório' [5].
E Marx, em O Capital, argumenta que, enquanto as pessoas tiverem ideias religiosas, significa que o mundo ainda funciona de maneira a produzir consequências que procuram se expressar por meio dos crentes. Não há por que os perseguir. Eles não são a causa, mas a manifestação da fé.'' (Em torno de Marx)
O próprio Marx (que, segundo você, ''odiava a liberdade de expressão'', embora tenha sido censurado diversas vezes pelo autoritário governo franco-prussiano), sobre liberdade de expressão:
''A função da imprensa é ser o cão-de-guarda , o denunciador incansável dos opressores, o olho onipresente e a boca onipresente do espírito do povo que guarda com ciúme sua liberdade. [..]'' (Liberdade de imprensa)
Sobre a ditadura do proletariado: sim, eu, como marxista, defendo a ditadura do proletariado. Em que consiste a mesma? Na tomada de poder do Estado e sua utilização pelo proletariado. Isso significa que os direitos civis dos burgueses serão simplesmente cassados e que estes serão friamente exterminados? Não se segue. Na URSS, p. ex. os NEPMEN podiam realizar iniciativas capitalistas (embora sempre houvessem fiscais para verificar as condições de trabalho), mas não tinham direito de voto. Ou você acha que, após uma revolução (E para uma revolução existir, a classe revolucionária necessita estar em condições muito cruéis), dar-se-á direito de voto e possibilidade de formar partidos aos burgueses?
A ''ditadura do proletariado'' é, também, indissociável da comando político por meio das comunas* ou sovietes, órgãos simultaneamente executivos e legislativos, de democracia semi-direta. Diz-nos Isaac Deutscher:
''Os deputados dos sovietes não eram escolhidos por um período fixo. O eleitorado tinha o direito de substituí-los por outros a qualquer momento. Sua composição renovava-s, portanto, através de frequentes eleições suplementares. Por isso, eles se transformaram num reflexo perfeito do cambiante estado de espírito popular. Esta era a fonte de uma incomparável autoridade moral. Além de dar representação semi-parlamentar às classes inferiores, eram também poder executivo de fato, com a qual a administração normal jamais poderia competir.'' (1970, p. 117)
*''O filisteu social-democrático recentemente se sentiu mais uma vez tomado por salutar terror ao ouvir a expressão 'ditadura do proletariado'. Pois então, senhores, querem saber como é esta ditadura? Olhem para a Comuna de Paris. Esta foi a ditadura do proletariado.'' (K. Marx e F. Engels, Obras, p. 1163)
5 - ''Os quais Marx detestava por conta de serem burgueses e de sua cultura ser voltada à busca do material em sentido econômico''
Deixe-me ver: Marx escreveu um artigo refutando a opinião de Bruno Bauer de que os judeus não mereciam direitos civis sob o Estado germânico (e ainda sugerindo uma estratégia de emancipação não só do povo ''germano-judaico'' em específico, mas dos alemães em geral (''Na Alemanha não existem cidadãos'') e da própria humanidade porque detestava os judeus? Interessante.
Engels, muitíssimo íntimo de Marx, também não parecia gostar muito de antissemitismo:
''Essas pessoas fazem parte dos antissemitas. Que eles procurem essa gente que promete salvar suas empresinhas.'' (Werke 22, p. 49)
5.2 - ''Marx fazia os judeus de espantalho para criticar direitos modernos, concebidos tais como foram no Iluminismo e centrais no mundo atual.''
De novo:
''Por que motivo - segundo Bauer - é o judeu incapaz de adquirir os direitos do homem? 'Pelo tempo em que permanecer judeu, a característica restrita que faz dele judeu prevalecerá sobre a característica humana que, enquanto homem, o associaria a outros homens; e o tornará isolado de todo aquele que não é judeu.' No entanto, a liberdade como direito do homem não se baseia nas relações ente homem e homem, mas sim na separação do homem a respeito do homem. É o direito de tal separação, o direito do indivíduo circunscrito, fechado em si mesmo.''
Para mim fica claro que Marx evoca aqui a importância dos direitos humanos para a proteção dos próprios judeus.
6 - ''Marx pensava o homem enquanto "ser social", isto é, não biopsicossocial e pertencente a um sistema, pessoa individual e inserida também numa sociedade. E sim, acreditava no coletivismo puro e impraticável uma vez que o holismo (ou coletivismo) é um paradigma de determinismo social.''
Como eu disse acima, estamos falando de um pensador de inteligência vastíssima e que tinha muito interesse pela obra de Darwin, além de doutor em filosofia. Sério que você acha que ele ignorava que cada sere humano fosse ''biopsicossocial'', ''pessoa individual e inserida também numa sociedade''? Poupe-me.
Vejamos agora o que Marx achava do ''coletivismo'' e o que entendia por ''ser social'' (além do resumo que eu já pus no texto da publicação sobre o conceito de ''ser genérico''):
''É falso considerar a sociedade como um sujeito único; trata-se de um ponto de vista especulativo.'' (Introdução geral à crítica da economia política)
''É preciso evitar que se considere a sociedade em antagonismo com o indivíduo, como uma abstração. O indivíduo é o ser social. A manifestação da sua vida - mesmo quando não surge diretamente na forma de uma manifestação comunitária, realizada juntamente com outros homens - constitui, assim, uma expressão e uma confirmação da vida social. A vida individual e a vida genérica do homem não são diferentes, por mais que - e isto é necessário - o modo de existência da vida individual seja um modo mais específico ou mais geral da vida genérica, ou por mais que a vida genérica constitua uma vida individual mais específica ou mais genérica.'' (Manuscritos de 1844)
''Mesmo quando desenvolvo uma atividade científica, uma atividade que raramente posso levar ao fim em associação direta com outros, sou social, porque é como humano que realizo tal atividade. Não é só o material da minha atividade - como também a própria linguagem que o pensador emprega - que me foi dado como produto social. A minha própria existência é atividade social. Por conseguinte, o que eu próprio produzo é para a sociedade que o produzo e com a consciência de agir como ser social.'' (Idem)
E agora veremos como a individualidade é tratada em Marx:
''A todo homem deve ser garantido o livre desenvolvimento de suas capacidades.'' (A ideologia alemã)
''A contradição entre a personalidade de cada proletário em particular e a condição de vida que lhe é imposta, o trabalho assalariado, torna-se evidente para ele, pois este é sacrificado desde a juventude e porque, no interior de sua própria classe, não terá jamais a chance de alcançar as condições que o façam passar de uma classe para outra. Enquanto, pois, os servos fugitivos só desejavam desenvolver livremente suas condições de existência já estabelecidas e fazê-las valer, mas o máximo a que chegaram foi ao trabalho livre, os proletários, caso queiram se afirmar como pessoas, devem superar sua própria condição anterior de existência, que é igualmente a condição até hoje de toda a sociedade, isto é, suprimir o trabalho (assalariado). Com isso, eles se põem em oposição direta à maneira pela qual até hoje os indivíduos da sociedade elegeram como expressão da coletividade, isto é, em oposição ao Estado, que deve ser extinguido para que possam realizar sua personalidade.'' (Idem)
''Em lugar da antiga sociedade burguesa, com suas classes e antagonismos de classe, surge (no comunismo) uma associação na qual o livre desenvolvimento de cada um é a condição para o livre desenvolvimento de todos.'' (Manifesto do partido comunista)
Há também as várias passagens de O Capital nas quais Marx condena o processo manufatureiro de produção, assim como o ''maquinofaturístico'', por cercear o desenvolvimento individual, tanto físico como intelectual, dos trabalhadores. Que enorme diferença para o pensamento do coletivista Aristóteles, que via em certos eres humanos apenas uma ferramenta para o bem da sociedade em geral (leia-se ''da elite grega da época'')!
7 - ''Marx confundia romanticamente, similar a um hegeliano contrarrevolucionário, os Direitos dos Homem e do Cidadão do Iluminismo como "egoístas" porque neles estavam intrínsecas coisas como liberdade de expressão e sobretudo liberdades individuais que o mundo ocidental, sofrido pela autoridade religiosa medieval imposta há séculos, não desfrutava e atualmente desfruta.''
Não, Marx não confundia 'romanticamente' os Direitos do Homem e do Cidadão como 'egoístas'. Ele analisou a aplicação prática desses direitos na sociedade moderna, no século XIX. Vá atrás das estatísticas sociais do período e verá quão bela era a plicação desses Direitos, os quais, na Inglaterra, não impediam patrões de empregarem meninos de 13 anos por mais de 10 horas diárias nas fábricas, e até mesmo à noite, privando-os de sono. Se um dia você deixar de mimimi com a obra marxiana e for estudar a coisa pra falar algo correto, pode dar uma olhada no capítulo 8 do tomo I d'O Capital, sobre a jornada de trabalho.
8 - ''Marx mais atacava a concepção judaica de seu tempo para defender a seus dogmas''
Marx escreveu ''A questão judaica'' em 1844. Ele sequer havia desenvolvido o materialismo histórico nessa época, muito menos sua teoria econômica. Não sei de que ~dogmas~ você fala.
9 - ''devido às recorrências falaciosas ad verecundiam e ao ad hominem que o Allefy me desfere ao dizer que "espalho desinformação" ao dizer que Marx era contra os direitos humanos, coisa que desmenti em meus argumentos e ainda mostrando falhas atuais e epistemológicas da esquerda com relação aos mesmos, DOU-LHE O PRIMEIRO AVISO PRÉ-STRIKE''
Já que você sabe e gosta tanto de lógica, farei um questionamento simples: se alguém diz que pensador ''x'' defendia coisa tal e não cita UM ÚNICO TRECHO DE QUALQUER OBRA DO MESMO defendendo tal coisa, nada mais óbvio do que tentar demonstrar a verdade por meio dos próprios escritos do autor. Chamar isso de ''apelo à autoridade'' (e mais, dizer que eu afirmar que você estar fazendo o que comentei acima, declarar que Marx defendia x ou y sem citar um único trecho dele em que isso ficasse claro, ser ''ad hominem'' ao mesmo tempo em que chama minhas longas citações literárias para esclarecimento da teoria e da história da teoria de ''citações bíblicas/dogmáticas'', e a mim próprio de dogmático) parece-me um tanto quanto engraçado.
Se, depois de mais uma série de informações vindas de extensa bibliografia de pesquisa, você achar que eu devo ser banido do grupo, para mim tudo bem.
PS. ''Marx foi contra o direito por tê-lo considerado burguês''
Ele foi ''contra o direito por tê-lo considerado burguês''? Oi? Quem foi que apoiou as leis de redução da jornada de trabalho e as leis de proteção às crianças (que anteriormente trabalhavam nas fábricas, em péssimas condições)? Foi contra o direito quando participou da fundação do Partido Social-Democrata Alemão, na esperança de ver melhorar as condições de vida do proletariado alemão? Eu, hein.
Sei não, acho que esse texto aqui não é coisa de quem ''é contra o direito por considerá-lo burguês'':
http://boradiscutir.blogspot.com.br/2014/10/trecho-de-manifesto-de-lancamento-da.html
segunda-feira, 12 de janeiro de 2015
quarta-feira, 7 de janeiro de 2015
Graubé
Boa noite, colegas.
Como o nosso querido colega Glauber Frota persiste em espalhar desinformação por aí - chegando a chamar de 'leitura bíblica' o ato de estudar a obra de um pensador para compreendê-lo e então criticá-lo - eu, como bom marxista que sou, senti necessidade de vir aqui desfazer o estrago.
A crítica do nosso racionalista resume-se em duas acusações:
1 - Marx considerava o direito algo 'burguês' (Presumo que o Glauber acredite que a URSS não somente foi um regime totalitário, mas que o tenha sido em virtude disto).
2 - Marx desprezava os direitos humanos.
Pro ser relativa à lei, a primeira acusação está relacionada com a teoria do Estado de Marx. Que teoria era esta?
Primeiro, é preciso saber que o pensamento de Marx distingue do de Locke, Kant e Hegel, pensadores com uma filosofia ideal de Estado, ou melhor, do Estado ideal. O filósofo de Treves, por outro lado, analisa o Estado tal como ele é (Norbeto Bobbio, o grande pensador italiano do direito, em seu Teoria das Formas de Governo, chama a visão de Marx de 'concepção técnica', ao que a de Locke, Kant e Hegel seriam 'concepções éticas'). Hegel, alvo de uma crítica especial de Marx, havia dito que ''o Estado, enquanto é a realidade da vontade substancial (...) é racional em si e per se'', deduzindo daí que o ''dever supremo'' de cada indivíduo era o de ''ser parte essencial do Estado''. Marx inverte essa noção - que submetia a família e a sociedade civil à primazia do Estado - e demonstra que, ao contrário, o Estado é que tem sua origem na sociedade civil.
''Na produção social de sua existência, os homens estabelecem relações determinadas, necessárias, independentes de sua vontade, relações de produção, que correspondem a um determinado grau de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. O conjunto destas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base concreta sob a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas de consciência social.'' (Prefácio de Contribuição à Crítica da Economia Política)
Observem aí que Marx se quer fala em classes, por ser a existência de classes apenas uma formação histórica determinada.
''Já que o Estado é, pois, a forma pela qual os indivíduos de uma classe dominantes fazem valer seus interesses comuns e na qual se resume toda a sociedade civil de uma época, segue-se que todas as instituições comuns são mediadas pelo Estado e dele adquirem uma forma política. Daí a ilusão de que a lei se baseia na vontade e, ainda mais, na vontade livre, destacada de sua base real. Do mesmo modo, o direito é reduzido, por sua vez, à lei.'' (A Ideologia Alemã)
Isto significa que Marx (e/ou Engels) faziam uma leitura reducionista? Que sustentavam a equação simplista ''Estado = poder de coerção = domínio de classe''? Não. O próprio Engels diz claramente, n'A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado que, com o crescimento de irreconciliáveis e intratáveis antagonismos de classe na sociedade, ''faz-se necessário um poder situado aparentemente sobre a sociedade e chamado a amortecer o choque, mantê-los nos limites da 'ordem'''. O professor Eric Hobsbawm acrescenta:
''Isto é, para evitar que o conflito de classe consumisse tanto as classes como a sociedade em 'luta estéril'. Ainda que, como norma, o Estado represente claramente os interesses da classe mais poderosa e dominante, a qual, por meio de seu controle, adquiriu novos meios de manter sob sujeição os oprimidos, cumpre notar que Engels aceita tanto a função social do Estado, ao menos negativamente, como um mecanismo para impedir a desagregação social, e também aceita o elemento de ocultação do poder, ou domínio por mistificação ou consentimento ostensivo, implícito no fato de o Estado parecer colocar-se acima da sociedade.'' (Marx, Engels e a política)
Nesse âmbito entra a legislação trabalhista (analisadas extensamente n'O Capital, por exemplo), o cuidado social, etc. Marx e Engels notam que essa neutralidade é somente aparência, sendo o Estado, em sua essência, ainda um aparelho da classe dominante. Quando, por exemplo,a instituição burguesa da democracia formal complica o domínio de classe da própria burguesia - tal como na França pré-Luís Bonaparte, no Chile de Salvador Allende ou no Brasil de Jango -, esta, como força dominante na sociedade civil, evoca o terror do totalitarismo.
''Assim, denunciando agora como 'socialista' tudo que anteriormente exaltara como 'liberal', a burguesia reconhece que seu próprio interesse lhe ordena subtrair-se aos perigos do autogoverno; que, a fim de restaurar a calma no país, é preciso antes de tudo restabelecer a calma no seu parlamento burguês; que, a fim de preservar intacto o seu poder social, seu poder político deve ser destroçado; que o burguês particular só pode continuar a explorar as outras classes e a desfrutar pacatamente a propriedade, a família, a religião e a ordem sob condição de que sua classe seja condenada, juntamente com as outras, à nulidade política; que, a fim de preservar sua bolsa, deve abrir mão da coroa, e que a espada que a deve salvaguardar é fatalmente também uma espada de Dâmocles suspensa sobre sua cabeça.'' (O 18 Brumário de Luís Bonaparte)
Daí, por exemplo, Edelman afirmar, em ''La légalisation de la classe ouvrière'':
''O direito de greve é um direito burguês. Entendemo-nos: eu não disse que a greve é burguesa, o que não teria sentido, mas o direito de greve é um direito burguês. O que quer dizer muito precisamente que a greve só acede à legalidade em certas condições, e que essas condições são as mesmas que permitem a reprodução do capital.''
Tratemos agora da segunda acusação. Marx trata dos ''direitos do homem'', notoriamente, n'A Questão Judaica:
''Os direitos do homem são, em parte, direitos políticos, que só se podem exercer quando se é membro de uma comunidade. O seu teor é a participação na vida da comunidade, na vida política do grupo, na vida do Estado. (...) Resta ainda considerar a outra parte, ou seja, os 'droits de l'homme' enquanto distintos dos 'droits du citoyen'.
Estão, entre eles, a liberdade de consciência, o direito de seguir a religião que se optar. O privilégio da fé é definitivamente reconhecido, ou como um direito do homem, ou como consequência de um direito do homem, a liberdade.''
Prossegue Marx (essa citação vai ser enorme, viu?):
''Quem é este 'homme' distinto do 'citoyen'? Somente pode ser o membro da sociedade civil. Por que razão ao membro da sociedade civil chamam-lhe ''homem'', unicamente ''homem'', e por que os seus direitos recebem o nome de ''direitos do homem''? Talvez pela relação entre o Estado político e a sociedade civil e pela característica da emancipação política.
Verifiquemos, primeiramente, o fato de os chamados direitos do homem, como sendo distintos dos direitos do cidadão, constituem apenas os direitos de um membro da sociedade civil, ou seja, do homem egoísta, do homem separado dos outros homens e da comunidade. A constituição mais radical, de 1793, artigo 2, outorga: 'Estes direitos, etc., [os direitos naturais e imprescritíveis] são igualdade, liberdade, segurança, propriedade'.
Mas no que consiste a liberdade? Artigo 6: ''A liberdade é o poder que o homem tem de fazer tudo o que não prejudique os direitos dos outros', ou então, segundo a Declaração dos Direitos do Homem de 1791: 'A liberdade consiste em poder fazer tudo o que não prejudique outrem'.
Consequentemente, a liberdade é o direito de fazer tudo o que não cause prejuízo aos outros. São determinados pela lei os limites dentro dos quais cada um pode atuar sem prejudicar os outros, assim como o limite entre os dois campos é muito bem determinado. Trata-se da liberdade do homem como mônada isolada, reservada para o interior de si mesma. Por que motivo - segundo Bauer - é o judeu incapaz de adquiri os direitos do homem?'Pelo tempo em que permanecer judeu, a característica restrita que faz dele judeu prevalecerá sobre a característica humana que, enquanto homem, o associaria a outros homens; e o tornará isolado de todo aquele que não é judeu.' No entanto, a liberdade como direito do homem não se baseia nas relações ente homem e homem, mas sim na separação do homem a respeito do homem. É o direito de tal separação, o direito do indivíduo circunscrito, fechado em si mesmo.
A aplicação prática do direito humano de liberdade é o direito de propriedade privada. Em que consiste o direito de propriedade privada?
Artigo 16 (Constituição de 1793*) - O direito de propriedade é o que pertence a cada cidadão de dispor e de usufruir como quiser de seus bens e rendimentos, dos frutos do próprio trabalho e diligência'.
Entretanto, o direito humano da propriedade privada é o direito de usufruir da própria fortuna e de dela dispor como desejar, sem atenção pelos outros homens, independente da sociedade. É o direito do interesse pessoal. Esta liberdade individual e a respectiva aplicação formam a base da sociedade civil. Ela leva cada homem a ver nos outros não somente a realização, mas a restrição da sua própria liberdade. Antes afirma o direito de 'desfrutar e dispor como quiser dos seus bens e rendimentos, dos frutos do próprio trabalho e esforço'.
Falta-nos ainda analisar os outros direitos do homem, que são a igualdade e a segurança.
A 'igualdade' não possui neste momento significado político. É apenas o igual direito à liberdade como antes foi definido; digamos, todo homem é considerado igualmente como mônada autossuficiente.Está definido na Constituição de 1795 o conceito de igualdade, conforme o seu sentido:
Artigo 3 (Constituição de 1795) - 'A igualdade consiste no fato de que a lei é igual para todos, quer ela proteja quer ela castigue'.
Mas o que podemos dizer da segurança?
Artigo 8 (Constituição de 1793) - 'A segurança está na proteção conferida pela sociedade a cada um dos seus membros para a salvaguarda da sua pessoa, dos seus direitos e da sua propriedade'.
Constitui a característica da segurança o supremo conceito da sociedade civil, o conceito da polícia. Qualquer sociedade exste tão somente para garantir a cada um dos seus membros a preservação da sua pessoa, dos seus direitos e da sua propriedade. Desta forma é que Hegel chama a sociedade civil para 'o estado de necessidade e de razão'.
A segurança como conceito não vem para alçar a sociedade civil acima do próprio egoísmo. A segurança é definida antes como a garantia do egoísmo.
Desta forma, nenhum dos possíveis direitos do homem vai além do homem egoísta, do homem como membro da sociedade civil; ou seja, como indivíduo destacado da sociedade, limitado a si próprio, ao seu interesse privado e ao seu capricho pessoal. Em todos os direitos do homem, ele está longe de ser considerado um ser genético**; ao contrário, a própria vida genérica - a sociedade - surge como sistema que é exterior ao indivíduo, como restrição da sua independência original. Praticamente o laço que os une é a necessidade natural, a necessidade e o interesse privado, a preservação da sua propriedade e das suas pessoas egoístas.''
No final do ''capítulo'', escreve Marx:
''Qualquer emancipação constitui uma restituição do mundo humano e das relações humanas ao próprio homem.
A emancipação política é a redução do homem, por um lado, a membro da sociedade civil, indivíduo independente egoísta e, por outro, cidadão, a pessoa moral.
Só será plena a emancipação humana quando o homem real e individual tiver em si o cidadão abstrato; quando um homem individual, na sua vida empírica, no trabalho e nas suas relações individuais, se tiver tornado um ser genérico; e quando tiver reconhecido e organizado as suas próprias forças como forças sociais, de maneira a nunca mais separar de si esta força social como força política.''
Como ficou claro, Marx não toscamente despreza os direitos humanos; ele, na verdade, compreende sua importância (o texto é uma tentativa de refutar Bauer em sua justificativa da condição dos judeus sob o Estado germano-cristão), mas também sua simplicidade, afirmando ser necessário ir além deles para levar adiante a emancipação humana - ou, em outras palavras, avançar do indivíduo abstrato, mônada isolada da sociedade civil, para os indivíduos concretos, relacionados de formas variadas com a comunidade.
*Se trata da Constituição de New Hampshire, provavelmente.
**Feuerbach discute a índole do homem e justifica que ele deve ser distinto dos animais não somente pela consciência, mas por um tipo especial de consciência. O homem não é consciente de si mesmo só como indivíduo; é também consciente de si mesmo como membro da espécie humana, apreendendo assim uma 'essência humana' que é idêntica em si e nos outros homens. Segundo Feuerbach, a capacidade para conceber a 'espécie' é o elemento fundamental no poder humano de raciocínio: 'A ciência é a consciência da espécie'. Marx, embora não inicie a sua linha de reflexão a partir deste significado dos termos, empregava-os noutros contextos; e insiste com maior força que Feuerbach em que, devido ao fato de a 'consciência genérica' definir a índole do homem, este só vive e atua autenticamente (ou seja, de acordo com seu próprio temperamento) quando vive e age deliberadamente como 'ser genérico', ou seja, como ser social.
Como o nosso querido colega Glauber Frota persiste em espalhar desinformação por aí - chegando a chamar de 'leitura bíblica' o ato de estudar a obra de um pensador para compreendê-lo e então criticá-lo - eu, como bom marxista que sou, senti necessidade de vir aqui desfazer o estrago.
A crítica do nosso racionalista resume-se em duas acusações:
1 - Marx considerava o direito algo 'burguês' (Presumo que o Glauber acredite que a URSS não somente foi um regime totalitário, mas que o tenha sido em virtude disto).
2 - Marx desprezava os direitos humanos.
Pro ser relativa à lei, a primeira acusação está relacionada com a teoria do Estado de Marx. Que teoria era esta?
Primeiro, é preciso saber que o pensamento de Marx distingue do de Locke, Kant e Hegel, pensadores com uma filosofia ideal de Estado, ou melhor, do Estado ideal. O filósofo de Treves, por outro lado, analisa o Estado tal como ele é (Norbeto Bobbio, o grande pensador italiano do direito, em seu Teoria das Formas de Governo, chama a visão de Marx de 'concepção técnica', ao que a de Locke, Kant e Hegel seriam 'concepções éticas'). Hegel, alvo de uma crítica especial de Marx, havia dito que ''o Estado, enquanto é a realidade da vontade substancial (...) é racional em si e per se'', deduzindo daí que o ''dever supremo'' de cada indivíduo era o de ''ser parte essencial do Estado''. Marx inverte essa noção - que submetia a família e a sociedade civil à primazia do Estado - e demonstra que, ao contrário, o Estado é que tem sua origem na sociedade civil.
''Na produção social de sua existência, os homens estabelecem relações determinadas, necessárias, independentes de sua vontade, relações de produção, que correspondem a um determinado grau de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. O conjunto destas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base concreta sob a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas de consciência social.'' (Prefácio de Contribuição à Crítica da Economia Política)
Observem aí que Marx se quer fala em classes, por ser a existência de classes apenas uma formação histórica determinada.
''Já que o Estado é, pois, a forma pela qual os indivíduos de uma classe dominantes fazem valer seus interesses comuns e na qual se resume toda a sociedade civil de uma época, segue-se que todas as instituições comuns são mediadas pelo Estado e dele adquirem uma forma política. Daí a ilusão de que a lei se baseia na vontade e, ainda mais, na vontade livre, destacada de sua base real. Do mesmo modo, o direito é reduzido, por sua vez, à lei.'' (A Ideologia Alemã)
Isto significa que Marx (e/ou Engels) faziam uma leitura reducionista? Que sustentavam a equação simplista ''Estado = poder de coerção = domínio de classe''? Não. O próprio Engels diz claramente, n'A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado que, com o crescimento de irreconciliáveis e intratáveis antagonismos de classe na sociedade, ''faz-se necessário um poder situado aparentemente sobre a sociedade e chamado a amortecer o choque, mantê-los nos limites da 'ordem'''. O professor Eric Hobsbawm acrescenta:
''Isto é, para evitar que o conflito de classe consumisse tanto as classes como a sociedade em 'luta estéril'. Ainda que, como norma, o Estado represente claramente os interesses da classe mais poderosa e dominante, a qual, por meio de seu controle, adquiriu novos meios de manter sob sujeição os oprimidos, cumpre notar que Engels aceita tanto a função social do Estado, ao menos negativamente, como um mecanismo para impedir a desagregação social, e também aceita o elemento de ocultação do poder, ou domínio por mistificação ou consentimento ostensivo, implícito no fato de o Estado parecer colocar-se acima da sociedade.'' (Marx, Engels e a política)
Nesse âmbito entra a legislação trabalhista (analisadas extensamente n'O Capital, por exemplo), o cuidado social, etc. Marx e Engels notam que essa neutralidade é somente aparência, sendo o Estado, em sua essência, ainda um aparelho da classe dominante. Quando, por exemplo,a instituição burguesa da democracia formal complica o domínio de classe da própria burguesia - tal como na França pré-Luís Bonaparte, no Chile de Salvador Allende ou no Brasil de Jango -, esta, como força dominante na sociedade civil, evoca o terror do totalitarismo.
''Assim, denunciando agora como 'socialista' tudo que anteriormente exaltara como 'liberal', a burguesia reconhece que seu próprio interesse lhe ordena subtrair-se aos perigos do autogoverno; que, a fim de restaurar a calma no país, é preciso antes de tudo restabelecer a calma no seu parlamento burguês; que, a fim de preservar intacto o seu poder social, seu poder político deve ser destroçado; que o burguês particular só pode continuar a explorar as outras classes e a desfrutar pacatamente a propriedade, a família, a religião e a ordem sob condição de que sua classe seja condenada, juntamente com as outras, à nulidade política; que, a fim de preservar sua bolsa, deve abrir mão da coroa, e que a espada que a deve salvaguardar é fatalmente também uma espada de Dâmocles suspensa sobre sua cabeça.'' (O 18 Brumário de Luís Bonaparte)
Daí, por exemplo, Edelman afirmar, em ''La légalisation de la classe ouvrière'':
''O direito de greve é um direito burguês. Entendemo-nos: eu não disse que a greve é burguesa, o que não teria sentido, mas o direito de greve é um direito burguês. O que quer dizer muito precisamente que a greve só acede à legalidade em certas condições, e que essas condições são as mesmas que permitem a reprodução do capital.''
Tratemos agora da segunda acusação. Marx trata dos ''direitos do homem'', notoriamente, n'A Questão Judaica:
''Os direitos do homem são, em parte, direitos políticos, que só se podem exercer quando se é membro de uma comunidade. O seu teor é a participação na vida da comunidade, na vida política do grupo, na vida do Estado. (...) Resta ainda considerar a outra parte, ou seja, os 'droits de l'homme' enquanto distintos dos 'droits du citoyen'.
Estão, entre eles, a liberdade de consciência, o direito de seguir a religião que se optar. O privilégio da fé é definitivamente reconhecido, ou como um direito do homem, ou como consequência de um direito do homem, a liberdade.''
Prossegue Marx (essa citação vai ser enorme, viu?):
''Quem é este 'homme' distinto do 'citoyen'? Somente pode ser o membro da sociedade civil. Por que razão ao membro da sociedade civil chamam-lhe ''homem'', unicamente ''homem'', e por que os seus direitos recebem o nome de ''direitos do homem''? Talvez pela relação entre o Estado político e a sociedade civil e pela característica da emancipação política.
Verifiquemos, primeiramente, o fato de os chamados direitos do homem, como sendo distintos dos direitos do cidadão, constituem apenas os direitos de um membro da sociedade civil, ou seja, do homem egoísta, do homem separado dos outros homens e da comunidade. A constituição mais radical, de 1793, artigo 2, outorga: 'Estes direitos, etc., [os direitos naturais e imprescritíveis] são igualdade, liberdade, segurança, propriedade'.
Mas no que consiste a liberdade? Artigo 6: ''A liberdade é o poder que o homem tem de fazer tudo o que não prejudique os direitos dos outros', ou então, segundo a Declaração dos Direitos do Homem de 1791: 'A liberdade consiste em poder fazer tudo o que não prejudique outrem'.
Consequentemente, a liberdade é o direito de fazer tudo o que não cause prejuízo aos outros. São determinados pela lei os limites dentro dos quais cada um pode atuar sem prejudicar os outros, assim como o limite entre os dois campos é muito bem determinado. Trata-se da liberdade do homem como mônada isolada, reservada para o interior de si mesma. Por que motivo - segundo Bauer - é o judeu incapaz de adquiri os direitos do homem?'Pelo tempo em que permanecer judeu, a característica restrita que faz dele judeu prevalecerá sobre a característica humana que, enquanto homem, o associaria a outros homens; e o tornará isolado de todo aquele que não é judeu.' No entanto, a liberdade como direito do homem não se baseia nas relações ente homem e homem, mas sim na separação do homem a respeito do homem. É o direito de tal separação, o direito do indivíduo circunscrito, fechado em si mesmo.
A aplicação prática do direito humano de liberdade é o direito de propriedade privada. Em que consiste o direito de propriedade privada?
Artigo 16 (Constituição de 1793*) - O direito de propriedade é o que pertence a cada cidadão de dispor e de usufruir como quiser de seus bens e rendimentos, dos frutos do próprio trabalho e diligência'.
Entretanto, o direito humano da propriedade privada é o direito de usufruir da própria fortuna e de dela dispor como desejar, sem atenção pelos outros homens, independente da sociedade. É o direito do interesse pessoal. Esta liberdade individual e a respectiva aplicação formam a base da sociedade civil. Ela leva cada homem a ver nos outros não somente a realização, mas a restrição da sua própria liberdade. Antes afirma o direito de 'desfrutar e dispor como quiser dos seus bens e rendimentos, dos frutos do próprio trabalho e esforço'.
Falta-nos ainda analisar os outros direitos do homem, que são a igualdade e a segurança.
A 'igualdade' não possui neste momento significado político. É apenas o igual direito à liberdade como antes foi definido; digamos, todo homem é considerado igualmente como mônada autossuficiente.Está definido na Constituição de 1795 o conceito de igualdade, conforme o seu sentido:
Artigo 3 (Constituição de 1795) - 'A igualdade consiste no fato de que a lei é igual para todos, quer ela proteja quer ela castigue'.
Mas o que podemos dizer da segurança?
Artigo 8 (Constituição de 1793) - 'A segurança está na proteção conferida pela sociedade a cada um dos seus membros para a salvaguarda da sua pessoa, dos seus direitos e da sua propriedade'.
Constitui a característica da segurança o supremo conceito da sociedade civil, o conceito da polícia. Qualquer sociedade exste tão somente para garantir a cada um dos seus membros a preservação da sua pessoa, dos seus direitos e da sua propriedade. Desta forma é que Hegel chama a sociedade civil para 'o estado de necessidade e de razão'.
A segurança como conceito não vem para alçar a sociedade civil acima do próprio egoísmo. A segurança é definida antes como a garantia do egoísmo.
Desta forma, nenhum dos possíveis direitos do homem vai além do homem egoísta, do homem como membro da sociedade civil; ou seja, como indivíduo destacado da sociedade, limitado a si próprio, ao seu interesse privado e ao seu capricho pessoal. Em todos os direitos do homem, ele está longe de ser considerado um ser genético**; ao contrário, a própria vida genérica - a sociedade - surge como sistema que é exterior ao indivíduo, como restrição da sua independência original. Praticamente o laço que os une é a necessidade natural, a necessidade e o interesse privado, a preservação da sua propriedade e das suas pessoas egoístas.''
No final do ''capítulo'', escreve Marx:
''Qualquer emancipação constitui uma restituição do mundo humano e das relações humanas ao próprio homem.
A emancipação política é a redução do homem, por um lado, a membro da sociedade civil, indivíduo independente egoísta e, por outro, cidadão, a pessoa moral.
Só será plena a emancipação humana quando o homem real e individual tiver em si o cidadão abstrato; quando um homem individual, na sua vida empírica, no trabalho e nas suas relações individuais, se tiver tornado um ser genérico; e quando tiver reconhecido e organizado as suas próprias forças como forças sociais, de maneira a nunca mais separar de si esta força social como força política.''
Como ficou claro, Marx não toscamente despreza os direitos humanos; ele, na verdade, compreende sua importância (o texto é uma tentativa de refutar Bauer em sua justificativa da condição dos judeus sob o Estado germano-cristão), mas também sua simplicidade, afirmando ser necessário ir além deles para levar adiante a emancipação humana - ou, em outras palavras, avançar do indivíduo abstrato, mônada isolada da sociedade civil, para os indivíduos concretos, relacionados de formas variadas com a comunidade.
*Se trata da Constituição de New Hampshire, provavelmente.
**Feuerbach discute a índole do homem e justifica que ele deve ser distinto dos animais não somente pela consciência, mas por um tipo especial de consciência. O homem não é consciente de si mesmo só como indivíduo; é também consciente de si mesmo como membro da espécie humana, apreendendo assim uma 'essência humana' que é idêntica em si e nos outros homens. Segundo Feuerbach, a capacidade para conceber a 'espécie' é o elemento fundamental no poder humano de raciocínio: 'A ciência é a consciência da espécie'. Marx, embora não inicie a sua linha de reflexão a partir deste significado dos termos, empregava-os noutros contextos; e insiste com maior força que Feuerbach em que, devido ao fato de a 'consciência genérica' definir a índole do homem, este só vive e atua autenticamente (ou seja, de acordo com seu próprio temperamento) quando vive e age deliberadamente como 'ser genérico', ou seja, como ser social.
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