Boa noite, colegas.
Como o nosso querido colega Glauber Frota persiste em espalhar desinformação por aí - chegando a chamar de 'leitura bíblica' o ato de estudar a obra de um pensador para compreendê-lo e então criticá-lo - eu, como bom marxista que sou, senti necessidade de vir aqui desfazer o estrago.
A crítica do nosso racionalista resume-se em duas acusações:
1 - Marx considerava o direito algo 'burguês' (Presumo que o Glauber acredite que a URSS não somente foi um regime totalitário, mas que o tenha sido em virtude disto).
2 - Marx desprezava os direitos humanos.
Pro ser relativa à lei, a primeira acusação está relacionada com a teoria do Estado de Marx. Que teoria era esta?
Primeiro, é preciso saber que o pensamento de Marx distingue do de Locke, Kant e Hegel, pensadores com uma filosofia ideal de Estado, ou melhor, do Estado ideal. O filósofo de Treves, por outro lado, analisa o Estado tal como ele é (Norbeto Bobbio, o grande pensador italiano do direito, em seu Teoria das Formas de Governo, chama a visão de Marx de 'concepção técnica', ao que a de Locke, Kant e Hegel seriam 'concepções éticas'). Hegel, alvo de uma crítica especial de Marx, havia dito que ''o Estado, enquanto é a realidade da vontade substancial (...) é racional em si e per se'', deduzindo daí que o ''dever supremo'' de cada indivíduo era o de ''ser parte essencial do Estado''. Marx inverte essa noção - que submetia a família e a sociedade civil à primazia do Estado - e demonstra que, ao contrário, o Estado é que tem sua origem na sociedade civil.
''Na produção social de sua existência, os homens estabelecem relações determinadas, necessárias, independentes de sua vontade, relações de produção, que correspondem a um determinado grau de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. O conjunto destas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base concreta sob a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas de consciência social.'' (Prefácio de Contribuição à Crítica da Economia Política)
Observem aí que Marx se quer fala em classes, por ser a existência de classes apenas uma formação histórica determinada.
''Já que o Estado é, pois, a forma pela qual os indivíduos de uma classe dominantes fazem valer seus interesses comuns e na qual se resume toda a sociedade civil de uma época, segue-se que todas as instituições comuns são mediadas pelo Estado e dele adquirem uma forma política. Daí a ilusão de que a lei se baseia na vontade e, ainda mais, na vontade livre, destacada de sua base real. Do mesmo modo, o direito é reduzido, por sua vez, à lei.'' (A Ideologia Alemã)
Isto significa que Marx (e/ou Engels) faziam uma leitura reducionista? Que sustentavam a equação simplista ''Estado = poder de coerção = domínio de classe''? Não. O próprio Engels diz claramente, n'A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado que, com o crescimento de irreconciliáveis e intratáveis antagonismos de classe na sociedade, ''faz-se necessário um poder situado aparentemente sobre a sociedade e chamado a amortecer o choque, mantê-los nos limites da 'ordem'''. O professor Eric Hobsbawm acrescenta:
''Isto é, para evitar que o conflito de classe consumisse tanto as classes como a sociedade em 'luta estéril'. Ainda que, como norma, o Estado represente claramente os interesses da classe mais poderosa e dominante, a qual, por meio de seu controle, adquiriu novos meios de manter sob sujeição os oprimidos, cumpre notar que Engels aceita tanto a função social do Estado, ao menos negativamente, como um mecanismo para impedir a desagregação social, e também aceita o elemento de ocultação do poder, ou domínio por mistificação ou consentimento ostensivo, implícito no fato de o Estado parecer colocar-se acima da sociedade.'' (Marx, Engels e a política)
Nesse âmbito entra a legislação trabalhista (analisadas extensamente n'O Capital, por exemplo), o cuidado social, etc. Marx e Engels notam que essa neutralidade é somente aparência, sendo o Estado, em sua essência, ainda um aparelho da classe dominante. Quando, por exemplo,a instituição burguesa da democracia formal complica o domínio de classe da própria burguesia - tal como na França pré-Luís Bonaparte, no Chile de Salvador Allende ou no Brasil de Jango -, esta, como força dominante na sociedade civil, evoca o terror do totalitarismo.
''Assim, denunciando agora como 'socialista' tudo que anteriormente exaltara como 'liberal', a burguesia reconhece que seu próprio interesse lhe ordena subtrair-se aos perigos do autogoverno; que, a fim de restaurar a calma no país, é preciso antes de tudo restabelecer a calma no seu parlamento burguês; que, a fim de preservar intacto o seu poder social, seu poder político deve ser destroçado; que o burguês particular só pode continuar a explorar as outras classes e a desfrutar pacatamente a propriedade, a família, a religião e a ordem sob condição de que sua classe seja condenada, juntamente com as outras, à nulidade política; que, a fim de preservar sua bolsa, deve abrir mão da coroa, e que a espada que a deve salvaguardar é fatalmente também uma espada de Dâmocles suspensa sobre sua cabeça.'' (O 18 Brumário de Luís Bonaparte)
Daí, por exemplo, Edelman afirmar, em ''La légalisation de la classe ouvrière'':
''O direito de greve é um direito burguês. Entendemo-nos: eu não disse que a greve é burguesa, o que não teria sentido, mas o direito de greve é um direito burguês. O que quer dizer muito precisamente que a greve só acede à legalidade em certas condições, e que essas condições são as mesmas que permitem a reprodução do capital.''
Tratemos agora da segunda acusação. Marx trata dos ''direitos do homem'', notoriamente, n'A Questão Judaica:
''Os direitos do homem são, em parte, direitos políticos, que só se podem exercer quando se é membro de uma comunidade. O seu teor é a participação na vida da comunidade, na vida política do grupo, na vida do Estado. (...) Resta ainda considerar a outra parte, ou seja, os 'droits de l'homme' enquanto distintos dos 'droits du citoyen'.
Estão, entre eles, a liberdade de consciência, o direito de seguir a religião que se optar. O privilégio da fé é definitivamente reconhecido, ou como um direito do homem, ou como consequência de um direito do homem, a liberdade.''
Prossegue Marx (essa citação vai ser enorme, viu?):
''Quem é este 'homme' distinto do 'citoyen'? Somente pode ser o membro da sociedade civil. Por que razão ao membro da sociedade civil chamam-lhe ''homem'', unicamente ''homem'', e por que os seus direitos recebem o nome de ''direitos do homem''? Talvez pela relação entre o Estado político e a sociedade civil e pela característica da emancipação política.
Verifiquemos, primeiramente, o fato de os chamados direitos do homem, como sendo distintos dos direitos do cidadão, constituem apenas os direitos de um membro da sociedade civil, ou seja, do homem egoísta, do homem separado dos outros homens e da comunidade. A constituição mais radical, de 1793, artigo 2, outorga: 'Estes direitos, etc., [os direitos naturais e imprescritíveis] são igualdade, liberdade, segurança, propriedade'.
Mas no que consiste a liberdade? Artigo 6: ''A liberdade é o poder que o homem tem de fazer tudo o que não prejudique os direitos dos outros', ou então, segundo a Declaração dos Direitos do Homem de 1791: 'A liberdade consiste em poder fazer tudo o que não prejudique outrem'.
Consequentemente, a liberdade é o direito de fazer tudo o que não cause prejuízo aos outros. São determinados pela lei os limites dentro dos quais cada um pode atuar sem prejudicar os outros, assim como o limite entre os dois campos é muito bem determinado. Trata-se da liberdade do homem como mônada isolada, reservada para o interior de si mesma. Por que motivo - segundo Bauer - é o judeu incapaz de adquiri os direitos do homem?'Pelo tempo em que permanecer judeu, a característica restrita que faz dele judeu prevalecerá sobre a característica humana que, enquanto homem, o associaria a outros homens; e o tornará isolado de todo aquele que não é judeu.' No entanto, a liberdade como direito do homem não se baseia nas relações ente homem e homem, mas sim na separação do homem a respeito do homem. É o direito de tal separação, o direito do indivíduo circunscrito, fechado em si mesmo.
A aplicação prática do direito humano de liberdade é o direito de propriedade privada. Em que consiste o direito de propriedade privada?
Artigo 16 (Constituição de 1793*) - O direito de propriedade é o que pertence a cada cidadão de dispor e de usufruir como quiser de seus bens e rendimentos, dos frutos do próprio trabalho e diligência'.
Entretanto, o direito humano da propriedade privada é o direito de usufruir da própria fortuna e de dela dispor como desejar, sem atenção pelos outros homens, independente da sociedade. É o direito do interesse pessoal. Esta liberdade individual e a respectiva aplicação formam a base da sociedade civil. Ela leva cada homem a ver nos outros não somente a realização, mas a restrição da sua própria liberdade. Antes afirma o direito de 'desfrutar e dispor como quiser dos seus bens e rendimentos, dos frutos do próprio trabalho e esforço'.
Falta-nos ainda analisar os outros direitos do homem, que são a igualdade e a segurança.
A 'igualdade' não possui neste momento significado político. É apenas o igual direito à liberdade como antes foi definido; digamos, todo homem é considerado igualmente como mônada autossuficiente.Está definido na Constituição de 1795 o conceito de igualdade, conforme o seu sentido:
Artigo 3 (Constituição de 1795) - 'A igualdade consiste no fato de que a lei é igual para todos, quer ela proteja quer ela castigue'.
Mas o que podemos dizer da segurança?
Artigo 8 (Constituição de 1793) - 'A segurança está na proteção conferida pela sociedade a cada um dos seus membros para a salvaguarda da sua pessoa, dos seus direitos e da sua propriedade'.
Constitui a característica da segurança o supremo conceito da sociedade civil, o conceito da polícia. Qualquer sociedade exste tão somente para garantir a cada um dos seus membros a preservação da sua pessoa, dos seus direitos e da sua propriedade. Desta forma é que Hegel chama a sociedade civil para 'o estado de necessidade e de razão'.
A segurança como conceito não vem para alçar a sociedade civil acima do próprio egoísmo. A segurança é definida antes como a garantia do egoísmo.
Desta forma, nenhum dos possíveis direitos do homem vai além do homem egoísta, do homem como membro da sociedade civil; ou seja, como indivíduo destacado da sociedade, limitado a si próprio, ao seu interesse privado e ao seu capricho pessoal. Em todos os direitos do homem, ele está longe de ser considerado um ser genético**; ao contrário, a própria vida genérica - a sociedade - surge como sistema que é exterior ao indivíduo, como restrição da sua independência original. Praticamente o laço que os une é a necessidade natural, a necessidade e o interesse privado, a preservação da sua propriedade e das suas pessoas egoístas.''
No final do ''capítulo'', escreve Marx:
''Qualquer emancipação constitui uma restituição do mundo humano e das relações humanas ao próprio homem.
A emancipação política é a redução do homem, por um lado, a membro da sociedade civil, indivíduo independente egoísta e, por outro, cidadão, a pessoa moral.
Só será plena a emancipação humana quando o homem real e individual tiver em si o cidadão abstrato; quando um homem individual, na sua vida empírica, no trabalho e nas suas relações individuais, se tiver tornado um ser genérico; e quando tiver reconhecido e organizado as suas próprias forças como forças sociais, de maneira a nunca mais separar de si esta força social como força política.''
Como ficou claro, Marx não toscamente despreza os direitos humanos; ele, na verdade, compreende sua importância (o texto é uma tentativa de refutar Bauer em sua justificativa da condição dos judeus sob o Estado germano-cristão), mas também sua simplicidade, afirmando ser necessário ir além deles para levar adiante a emancipação humana - ou, em outras palavras, avançar do indivíduo abstrato, mônada isolada da sociedade civil, para os indivíduos concretos, relacionados de formas variadas com a comunidade.
*Se trata da Constituição de New Hampshire, provavelmente.
**Feuerbach discute a índole do homem e justifica que ele deve ser distinto dos animais não somente pela consciência, mas por um tipo especial de consciência. O homem não é consciente de si mesmo só como indivíduo; é também consciente de si mesmo como membro da espécie humana, apreendendo assim uma 'essência humana' que é idêntica em si e nos outros homens. Segundo Feuerbach, a capacidade para conceber a 'espécie' é o elemento fundamental no poder humano de raciocínio: 'A ciência é a consciência da espécie'. Marx, embora não inicie a sua linha de reflexão a partir deste significado dos termos, empregava-os noutros contextos; e insiste com maior força que Feuerbach em que, devido ao fato de a 'consciência genérica' definir a índole do homem, este só vive e atua autenticamente (ou seja, de acordo com seu próprio temperamento) quando vive e age deliberadamente como 'ser genérico', ou seja, como ser social.
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